Domingo, 21 de Maio de 2006
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Lisboa
21.05.06
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Largo Barão de Quintela com integridade em risco



Maria João Pinto Paulo Spranger
Por que razão é o património o primeiro valor a ser sacrificado em Portugal? Recorrentemente posta pelos profissionais do sector, a questão ressurge perante a anunciada construção de mais um parque de estacionamento subterrâneo no coração da cidade histórica. Desta feita num lugar de referência da Lisboa de finais de Setecentos, prolongando-se por todo o século XIX - o Largo Barão de Quintela, funcional e imageticamente indissociável de uma das principais peças classificadas do Chiado: o Palácio Quintela-Farrobo, à Rua do Alecrim. Lugar- -chave também no roteiro queirosiano da cidade e no longo eixo Cais do Sodré/Largo do Rato, a que Lisboa'94 daria renovada visibilidade baptizando-o como Sétima Colina.

Cinco pisos, para uma lotação de 270 lugares de estacionamento, com previsão de posterior alargamento ao vizinho parque da Praça Camões. Em ambos os casos, o direito de superfície foi cedido pela Câmara Municipal de Lisboa (CML) - que afirmou já não abdicar do projecto - à Fábrica da Igreja de Nossa Senhora do Loreto.

Contestado pelo movimento cívico Fórum Cidadania Lisboa, que esta semana lançou uma petição online, e pela Quercus, o projecto está a suscitar o repúdio de instituições culturais da cidade e de especialistas na área do património. Secundando a tomada de posição de Raquel Henriques da Silva, historiadora da arte, arquitectura e urbanismo, que, em artigo de opinião no jornal Público, classificou este projecto como "um torpe e inútil crime". Tomada de posição que, disse Raquel Henriques da Silva ao DN, veio "dar voz a um sem--número de outras vozes" que ao longo dos anos vêm alertando para as perdas que a cidade está a sofrer, num quadro de "sucessivos lutos".

É o caso do Centro Nacional de Cultura, que "subscreve na totalidade" a posição da investigadora. Também o Grémio Literário, pela voz do seu presidente, se manifesta "contrário a qualquer atentado ao património da cidade". "Não sendo possível harmonizar necessidades de estacionamento com o perfil daquele largo", sublinha José Macedo e Cunha, "o seu valor histórico e patrimonial prevalece sobre os demais".

"Solidário" com Raquel Henriques da Silva, o olisipógrafo José Luís de Matos enquadra este caso num longo processo de "destruição da memória" de Lisboa: "Trata-se de um projecto que vai descaracterizar por completo uma área nobre da cidade e que nada vai resolver em matéria de estacionamento."

Para lá das implicações no edificado e no perfil do largo, o quadro não será, lembra, menos crítico do ponto de vista do seu potencial arqueológico: "Naquela zona existiu uma capela, que foi [cabeça de] paróquia e certamente que irão encontrar-se vestígios dela e do cemitério em torno. Trata-se de uma zona muito sensível, urbanizada logo a partir do século XVI e que acompanha o crescimento do Bairro Alto e da zona baixa da cidade."

Também o historiador de arte José Meco afirma não compreender o porquê deste projecto nesta localização, "sobretudo quando importa libertar Lisboa do automóvel". "Aquele largo não deve ser tocado - a cidade não pode ser destruída continuamente." Com uma intervenção desse tipo, sublinha, "toda a sua fisionomia e encanto vão perder-se. E, mesmo estando aprovados os projectos, os erros também se podem corrigir, se houver bom senso e decisão".

Considerando "inaceitável" que a cidade histórica continue a ser alvo de intervenções lesivas "numa sucessão de factos consumados", José Morais Arnaud, presidente da Associação dos Arqueólogos Portugueses, lembra, por seu turno, estarmos perante um largo que permaneceu imune a intervenções dissonantes, circunstância cada vez mais rara. "Este projecto", refere, "vai ter implicações gravíssimas ao nível do património arquitectónico e do potencial arqueológico do lugar, com impactes enormes quer na fase de obra , quer de exploração. Vai ter necessariamente implicações na estabilidade do edificado e congestionar ainda mais uma via de acesso já hoje estrangulada."

À memória, lembra Morais Arnaud, virá sempre "o gravíssimo atentado cometido na Praça da Figueira", quando da construção do seu parque subterrâneo. Ou casos recentes, "como o da casa de Garrett, que nos mostram que não temos a mínima garantia de que o património da cidade será preservado" num país "onde apenas os direitos adquiridos são intocáveis".

O que se passou na Praça da Figueira em 2000 é, também, para a olisipógrafa Marina Tavares Dias, um marco pelas piores razões: "Para se criar um parque de estacionamento cometeu-se o maior crime de lesa-património dos últimos 50 anos, com a destruição, em total impunidade, de vestígios de quase todas as eras importantes na trajectória da cidade."

Situação que se repetiria a outra escala, lembra, no Martim Moniz e no Camões, no quadro de "uma política que vem destruindo a cidade", face aos "interesses das imobiliárias e do tráfego automóvel". Política que, refere, a transformará, um dia, "numa cidade de sombras".
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