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Largo
Barão de Quintela com integridade em risco
Maria João Pinto Paulo Spranger
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Por que razão é o
património o primeiro valor a ser sacrificado em Portugal?
Recorrentemente posta pelos profissionais do sector, a questão
ressurge perante a anunciada construção de mais um parque de
estacionamento subterrâneo no coração da cidade histórica. Desta
feita num lugar de referência da Lisboa de finais de Setecentos,
prolongando-se por todo o século XIX - o Largo Barão de Quintela,
funcional e imageticamente indissociável de uma das principais peças
classificadas do Chiado: o Palácio Quintela-Farrobo, à Rua do
Alecrim. Lugar- -chave também no roteiro queirosiano da cidade e no
longo eixo Cais do Sodré/Largo do Rato, a que Lisboa'94 daria
renovada visibilidade baptizando-o como Sétima Colina.
Cinco
pisos, para uma lotação de 270 lugares de estacionamento, com
previsão de posterior alargamento ao vizinho parque da Praça Camões.
Em ambos os casos, o direito de superfície foi cedido pela Câmara
Municipal de Lisboa (CML) - que afirmou já não abdicar do projecto -
à Fábrica da Igreja de Nossa Senhora do Loreto.
Contestado
pelo movimento cívico Fórum Cidadania Lisboa, que esta semana lançou
uma petição online, e pela Quercus, o projecto está a
suscitar o repúdio de instituições culturais da cidade e de
especialistas na área do património. Secundando a tomada de posição
de Raquel Henriques da Silva, historiadora da arte, arquitectura e
urbanismo, que, em artigo de opinião no jornal Público,
classificou este projecto como "um torpe e inútil crime". Tomada de
posição que, disse Raquel Henriques da Silva ao DN, veio "dar voz a
um sem--número de outras vozes" que ao longo dos anos vêm alertando
para as perdas que a cidade está a sofrer, num quadro de "sucessivos
lutos".
É o caso do Centro Nacional de Cultura, que
"subscreve na totalidade" a posição da investigadora. Também o
Grémio Literário, pela voz do seu presidente, se manifesta
"contrário a qualquer atentado ao património da cidade". "Não sendo
possível harmonizar necessidades de estacionamento com o perfil
daquele largo", sublinha José Macedo e Cunha, "o seu valor histórico
e patrimonial prevalece sobre os demais".
"Solidário" com
Raquel Henriques da Silva, o olisipógrafo José Luís de Matos
enquadra este caso num longo processo de "destruição da memória" de
Lisboa: "Trata-se de um projecto que vai descaracterizar por
completo uma área nobre da cidade e que nada vai resolver em matéria
de estacionamento."
Para lá das implicações no edificado e no
perfil do largo, o quadro não será, lembra, menos crítico do ponto
de vista do seu potencial arqueológico: "Naquela zona existiu uma
capela, que foi [cabeça de] paróquia e certamente que irão
encontrar-se vestígios dela e do cemitério em torno. Trata-se de uma
zona muito sensível, urbanizada logo a partir do século XVI e que
acompanha o crescimento do Bairro Alto e da zona baixa da
cidade."
Também o historiador de arte José Meco afirma não
compreender o porquê deste projecto nesta localização, "sobretudo
quando importa libertar Lisboa do automóvel". "Aquele largo não deve
ser tocado - a cidade não pode ser destruída continuamente." Com uma
intervenção desse tipo, sublinha, "toda a sua fisionomia e encanto
vão perder-se. E, mesmo estando aprovados os projectos, os erros
também se podem corrigir, se houver bom senso e
decisão".
Considerando "inaceitável" que a cidade histórica
continue a ser alvo de intervenções lesivas "numa sucessão de factos
consumados", José Morais Arnaud, presidente da Associação dos
Arqueólogos Portugueses, lembra, por seu turno, estarmos perante um
largo que permaneceu imune a intervenções dissonantes, circunstância
cada vez mais rara. "Este projecto", refere, "vai ter implicações
gravíssimas ao nível do património arquitectónico e do potencial
arqueológico do lugar, com impactes enormes quer na fase de obra ,
quer de exploração. Vai ter necessariamente implicações na
estabilidade do edificado e congestionar ainda mais uma via de
acesso já hoje estrangulada."
À memória, lembra Morais
Arnaud, virá sempre "o gravíssimo atentado cometido na Praça da
Figueira", quando da construção do seu parque subterrâneo. Ou casos
recentes, "como o da casa de Garrett, que nos mostram que não temos
a mínima garantia de que o património da cidade será preservado" num
país "onde apenas os direitos adquiridos são intocáveis".
O
que se passou na Praça da Figueira em 2000 é, também, para a
olisipógrafa Marina Tavares Dias, um marco pelas piores razões:
"Para se criar um parque de estacionamento cometeu-se o maior crime
de lesa-património dos últimos 50 anos, com a destruição, em total
impunidade, de vestígios de quase todas as eras importantes na
trajectória da cidade."
Situação que se repetiria a outra
escala, lembra, no Martim Moniz e no Camões, no quadro de "uma
política que vem destruindo a cidade", face aos "interesses das
imobiliárias e do tráfego automóvel". Política que, refere, a
transformará, um dia, "numa cidade de sombras". |
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